O Tempo em Ulysses

Horário

Uma das coordenadas que mais chama a atenção nesta obra de James Joyce é que toda a ação se passa num determinado dia, em horários que estabelecem uma inserção delimitadora, como se fosse um espaço físico.

Vejamos antes a Estrutura Narrativa

Richard Ellmann e a estrutura narrativa

Que me perdoem os entendidos, mas acho que Richard Ellmann não atingiu o objetivo de elucidar a questão do tempo na forma como Joyce o usou. Existem outras perspectivas (colocadas em sequencia) que, a meu ver, fazem isto de forma mais esclarecedora e podemos apreciar melhor o papel do tempo na estrutura narrativa de Ulysses. Vejamos:

Conceito de tempo de McLuhan aplicável ao Ulysses de Joyce

Se procurarmos na Internet a seco, isto é, teclando no google "time in James Joyce Ulysses" ou por ai, não aparecem ensaios que poderiam minimizar ou sanar a falha que Richard Ellmann aponta e que eu grifei em vermelho, One of the areas of Ulysses that has often been overlooked, however, is that of the various functions played by the passage of time and awareness of time in the novel, Aliás, o primeiro artigo que aparece é o que eu indico acima e, neste artigo, Ellmann apenas apontou o elemento do tempo em varios pontos da obra, mas não contribuiu tambem efetivamente para o que ele cue ele chama de the decipherment of obscurities. Se examinarmos as disponibilizações, uma delas, em forma de blog, chama a atenção pelo equívoco, o grau de confusão, o pedantismo e a falsa erudição, e não especifico por razões óbvias no caso deste nosso trabalho ficar público.

A meu ver, e creio que tambem no de quem se debruçar sobre isto, McLuhan, no seu livro A Galaxia de Gutemberg faz isto de forma totalmente satisfatória e transcrevo de lá meus comentários para conhecimento e julgamento dos leitores e leitoras:

Quero lembrar a observação de T.S.Elliot, citada pelo prof Heffernann e que eu já mencionei na análise dialética do método que estou propondo:

T.S.Elliot, por sua vez, afirmou que ele considerava este livro a mais importante expressão desta era, sendo que somos todos dele devedores e do qual ninguem consegue fugir. Elliot, nos informa Heffeneran, disse que Joyce fugiu do padrão do sec 19, usava um único ponto de vista consistente e particular, e Joyce partiu para um o manuseio de um paralelo continuo entre a contemporaneidade e a antiguidade, no que T S Elliot chamou de estilo mitico. Elliot ainda afirmou que Joyce usa uma estrutura mitica antiquissima para dar sentido de controlar, ordenar, dar uma forma, uma significancia, para o enorme panorama de futilidade e anarquia que é o mundo contemporâneo.

Ora, Joyce não poderia ter feito isto sem o fazê-lo dentro da percepção que McLuhan aponta e que eu comento abaixo:

O ponto de vista da Idade Média e dos gregos é o mesmo e não o nosso, a relação que tem o alfabeto com novidades artísticas e ciência, as iluminuras como algo a parte e a recuperação atual pela tecnologia eletrônica (90)

Para nossas finalidades, que é navegar a favor da corrente e fazer exatamente isto que estes seis tabletes indicam, isto é, usar a eletrônica de forma a devolver ao homem atual a perspectiva que existiu um dia, estes conceitos apresentados são essenciais, não importando o quanto certo ou errado estejam. Isto é, se McLuhan tem dificuldade em demonstrar o ponto, porém ele esta carregado de razão em ter descoberto o que é um fato: a eletrônica nos devolveu a um tempo anterior que já existiu e no qual foram feitas muitas coisas na criação ou educação, ou o que seja que envolva comunicação.

O elemento "misterioso" por assim dizer, que afeta nossa percepção é a noção de tempo. Discuto iso mais abaixo sob a ótica de quem eu considero dos mais competentes autores sobre o tema, J.B.Priestley. Voltemos a McLuhan:

McLuhan cita Bernard van Groningen, do seu trabalho In the Grip of the Past (Nas garras do passado), que tem duplo sentido, pois não é apenas examinar o passado, mas a noção de passado, pois, segundo ele, os gregos e todas as sociedades não alfabetizadas, tinham uma concepção cósmica, mítica do tempo como simultâneo, ao que acrescento, instante presente, verdade psicológica, que é o que sentimos a eventos que nos afetaram profundamente, ou seja, existem o tempo todo instantaneamente. Como conseqüência disto, sobre a idéia de passado, Van Groningen acrescenta "Os gregos freqüentemente se referem ao passado e, ao fazê-lo, ligam o assunto em questão a uma concepção cronológica. Mas assim que investigamos, o verdadeiro significado, evidencia-se que a idéia não é temporal, mas usada num sentido geral."

Isto, em relação ao tempo, é o mesmo que, em relação ao espaço, reduzir o tamanho da figura na pintura, sem um ponto de vista ou de fuga para a perspectiva.

A visualização de seqüências cronológicas é desconhecida nas sociedades orais, como agora é irrelevante na era da eletrônica do movimento da informação.

O "fio da narrativa" é tão revelador quanto a linha na pintura ou escultura, pois explica exatamente até que ponto se processou a dissociação do sentido de visão dos outros sentidos.
Erich Auerbach, no seu trabalho The Representation of Reality in Western Literature, que se dedica a análise estilística da arte da narrativa nas literaturas do Ocidente, desde Homero até hoje, nos diz que, por ex, Aquiles e Ulisses e Aquiles, de Homero, são apresentados em quadros verticais e planos, por meios de descrições plenamente exteriorizadas, sob iluminação uniforme e conexão ininterrupta, nas quais a livre expressão situa todos os incidentes em primeiro plano, revelando significados incontestáveis, com um mínimo de desenvolvimento histórico e de perspectiva psicológica.

Ou seja, o visual tende ao explicito, ao uniforme e ao conseqüente na pintura, na poesia, na lógica, na historia.

Os não alfabetizados ou não letrados, tendem ao implícito, simultâneo e descontinuo, seja no passado primitivo ou no presente eletrônico. (grifo meu, REC)

Totalmente contrario ao que, por exemplo na física de Newton, conforme Sir Edmundo Whittaker escreve em seu livro Space and Spirit (pg 86)

"O newtonianismo, como o aristotelismo, procura compreender o mundo tentando descobrir a ligação dos eventos entre si, e isso se efetua por meio da ordenação de nossas experiências de conformidade com a categoria de causa e efeito, descobrindo-se para cada fenômeno seus agentes determinantes ou antecedentes. A afirmação que essa ligação é universal e que nenhum evento acontece sem causa, é o postulado de causalidade."

Homogeneidade, uniformidade e repetibilidade eis as notas componentes e básicas de um mundo novo a emergir da matriz audiotáctil.

A questão central que está por trás desta "tendência" do que Mcluhan chama de globalismo sensorial anterior à invenção de Gutenberg, que os sentidos humanos impuseram ao ser humano, ou melhor, a única forma disponível, que é "aprender" no sentido de captar, através do táctil e dos outros sentidos, sem o isolamento característico do visual da cultura alfabética que Gutenberg introduziu pela massificação dos livros.

Este aspecto talvez seja o mais difícil de entender das idéias de McLuhan e vale a pena nos estendermos mais um pouco.

McLuhan não discute, ou melhor, discute prolixamente de outra forma, algo que William M.Ivins, Jr, em seu livro Prints and Visual Communication, que McLuhan indica ter usado, trazendo um conceito para objetos que eu gostaria de estender para toda a realidade, que é a Ipseidade, ou a particularidade da natureza de um objeto. Ou o ser isto e não aquilo, ou como fazer se quisermos comunicar a alguém sem ter o objeto em mãos, o que seria.

Penso num plural de ipseidades, incluindo subjetividade ou coisas que não são materiais, como sensações ou idéias que temos quando nos submetemos a certas situações.

Em condições ideais, seria a criação de uma virtualidade sobre as coisas a que submetemos nossos sentidos.

No caso do filme apresentado aos africanos, que gerou deles a percepção de apenas verem uma galinha e não o que um europeu, ou americano educado, veriam, que é o aspecto de como o acumulo de lixo e a água parada tem a ver com a saúde, a ipseidade deles é totalmente diversa da dos alfabetizados, pois que eles usam um meio de se aperceber das coisas que o cercam e como pensar sobre elas e os alfabetizados usa outro.

Vale uma interrupção e talvez um avanço lá na frete e dar uma olhada no trabalho sobre os africanos feito pelas profas. Marizilda Menezes e Jacqueline Gonçalves Fernandes pode ser visto aqui<.

Ivins introduz este conceito para uma situação objetiva em que ele quer explorar o efeito que a técnica de gravação permite reproduzir por exemplo imagens visuais de plantas, eventualmente medicinais, de forma que uma pessoa do séc XX possa se beneficiar das mesmas propriedades curativas desta mesma planta como o fizeram no século XVI, por exemplo. Ou seja como comunicar de uma pessoa para outra o saber (no sentido do conceito disponível e sacramentado seja pelo que seja) sobre elas associado com o conhecimento, que é o uso e a convivência e a obtenção dos efeitos esperados.

Por exemplo como distinguir por qualquer tipo de descrição a diferença entre mandioca brava e a comestível, para que a pessoa nao corra o risco de se envenenar comendo errado?

Como distinguir, numa mata que imagino exista na África, os sinais de que eventualmente você pode estar na mira do jantar de algum leão?

Com decidir se você, brasileiro, vive atualmente nos Estados Unidos se é melhor largar tudo e voltar para o Brasil ou ficar lá?

Nos três casos, nossa ipseidade ou a de quem nos poderia nos aconselhar é totalmente diferente e depende da forma como foi obtido o conceito e conhecimento sobre o que esta sendo tratado.

Existe uma tremenda diferença entre conhecimento sensorial e conceito intelectual obtido pela leitura ou descrição do que está em jogo.

Esta diferença pode ser entendida, por exemplo, comparando-se o conhecimento de um astronauta com um aborigene na Australia, que é similar ao dos africanos descritos acima e por McLuhan. Se deixarmos um astronauta e um aborigene no deserto australiano, o aborigene sobreviverá, e bem, como o tem feito ha centenas de anos, e o astronauta, morre em pouco tempo. Agravado pelo aspecto que existem estudos sobre a origem do homo sapiens que colocam o aborigene australiano como um tipo anterior ao homo sapiens...

No caso do filme de McLuhan, como no caso do aborigene australiano ou das pessoas que detem a forma de conhecimento como mostrada acima, eles vêem o que precisam e conseguem ver e não o que algum livro ensinou para eles...

Os personagens de Ulysses tambem...

Neste caso, o que esta em jogo na questão do ponto de vista, é que a ipseidade obtida pelos sentidos todos juntos, que é o caso anterior à tecnologia de Gutemberg que monopolizou a forma de conhecer, e a que vingou e prevalece hoje, que é a cultura alfabetizada.

A grande sacada de McLuhan é que o computador, os meios de comunicação, a Internet enfim, geram uma ipseidade similar a que existia antes da alfabetização e meu objetivo neste estudo, é entender isto para tirar maximo partido dele na direção que eu desejar.

Uma coisa que me chamou particularmente a atenção, foi o efeito que isto possa ter tido na lógica de Aristóteles, da qual McLuhan apenas pontua a questão da silogística, isto é, segundo Aristóteles, o requerimento é apenas que os termos sejam homogêneos no tocante a suas possíveis posições como sujeitos e predicados, que fazia com que Aristóteles omitisse os termos singulares, alias citado da obra de Jan Lukasiewicz, Aritotle´s Syllogistic.

Esta falha, na analise de Lukasiewicz residia no fato de que os gregos buscavam as novidades de ordem visual e homogeneidade linear. McLuhan indica ainda que este autor observa sobre a natureza da "lógica" e da faculdade visual e abstrata:

"A lógica formal moderna esforça-se por obter a maior exatidão possível. Esse alvo só pode ser alcançado por meio de uma linguagem precisa, formada de sinais estáveis e visualmente perceptíveis. Tal linguagem é indispensável para qualquer ciência" ao que McLuhan acrescenta: Mas tal linguagem é feita pela exclusão de tudo que não tenha sentido visual, até mesmo as palavras. (grifo meu, REC)

Vale a pena citar ipsis literis o que McLuhan tem a dizer sobre isto, na pág 94:

"A única preocupação aqui é determinar o grau de influencia que o alfabeto teve sobre os que primeiro o usaram. Linearidade e homogeneidade das partes foram "descobertas", ou antes mudanças na vida sensória dos gregos sob o novo regime da escrita fonética. Os gregos expressaram esses novos modos de percepção visual nas artes. Os romanos estenderam a linearidade e a homogeneidade pelas esferas civis e militares e pelo mundo do arco e do espaço visual, ou fechado. Não somente estenderam as "descobertas" gregas, como sofreram o mesmo processo de destribalização e visualização. Estenderam a linearidade por todo um império e a homogeneização para o processamento-em-massa de cidadãos, da estatuária e dos livros. Hoje os romanos sentir-se-iam bem a vontade nos Estados Unidos e os gregos, em comparação, prefeririam as culturas "atrasadas" e orais de nosso mundo, tais como a Irlanda e o Velho Sul da América do Norte."

Uma forma objetiva e prática de entender sem obscurecer

O filme Para Sempre (The Vow), cuja sinopse é a história que inspirou o filme:

A vida que Kim e Krickitt Carpenter conheciam mudou completamente no dia 24 de novembro de 1993, dois meses após o seu casamento, quando a traseira do seu carro foi atingida por uma caminhonete que transitava em alta velocidade. Um ferimento sério na cabeça deixou Krickitt em coma por várias semanas. Quando finalmente despertou, parte da sua memória estava comprometida e ela não conseguia se lembrar de seu marido. Ela não fazia a menor ideia de quem ele era. Essencialmente, a "Krickitt" com quem Kim havia se casado morreu no acidente, e naquele momento ele precisava reconquistar a mulher que amava.

Aos 17 minutos do filme, quando Kim descobre que a mulher perdera a memória e não sabia quem ele era, ele faz uma consideração sobre o que ele chama "Estes momentos de impacto", que "definem quem somos". Porém, a dúvida que ele levanta, "e se um dia não conseguirmos lembrar de nenhum deles?"

Ele faz estas considerações em fluxo de consciência... num monólogo interior, no estilo de Ulysses de Joyce e... é óbvio que Ulysses é uma enorme quantidade de momentos de impacto que definem quem são os irlandeses e quem é ele... Excluo sua esposa Nora, pois que existe consenso e eu concordo, que ele não a define...

Por outro lado, para criar um mapa mental de Dublin, ele somente o poderia fazê-lo através dos momentos que internalizou diante da impressão que as realidades que ele descreve e, ao fazê-lo, êle o faz visualmente através de palavras e o efeito é exatamente o que McLuhan comenta e eu realcei acima: Mas tal linguagem é feita pela exclusão de tudo que não tenha sentido visual, até mesmo as palavras

O horário, age como um catalizador, armação, andaime de construção, invólucro, para preenchimento em torno do esqueleto do Ulysses de Homero, para que Joyce consiga explorar seus "momentos de impacto"...

Man & Time - J.B.Priestley

Priestley ficou famoso e se tornou uma figura nacionalmente conhecida após sua primeira peça The Good Companions, que pode ser vista o Youtube.

Esta peça foi incorporada na cultura inglesa como as peças de Shakeaspeare e recentemente o National Theater levou uma produção dela.

Se você não tem tempo para vê-la, dê uma lida na Wikipedia para saber do que se trata.

Para a lusofonia, especialmente no Brasil, existem autores da lingua inglesa que são praticamente desconhecidos, mas que são extremamente competentes e que lhes são reservadas secções inteiras nas livrarias, tal a demanda que existe deles da parte de quem fala aquela lingua e, apesar disto, eles simplesmente não são traduzidos ou conhecidos no Brasil ou Portugal, ou noutros lugares onde se fala Português. Priestleky é um caso destes.

Priestley não se notabiliza pelos livros, embora os tenha escrito e editado e até tenham chegado aqui no Brasil, mas se notabiliza por suas peças, especialmente por seu tratamento do tempo, que é único e talvez incomparável. Ele sofreu grande influencia dos conceitos de J.W.Dunne sobre tempo, especialmente as contidas no seu livro An Experiment With Time. T.S. Elliot tambem se interessou por Dunne e isto esta refletido em Burnt Norton, onde é discutida a natureza do tempo e a salvação.

A peça teatral mais conhecida de Priestley influenciada por Dunne é Time and the Conways, que deu origem a um filme que pode ser visto no youtube. Se você não tem tempo para isto, veja a explicação do conceito de tempo contido nela.

No seu livro Man & Time, Priestley nos diz o seguinte sobre tempo em Ulysses: (ver maiores detalhes acima, como ele chegou até isto)

O terceiro método poderia ser descrito como slow motion ou câmera lenta.

Trata de episódios que num relato toma mais tempo do que levaria para experenciá-lo na vida real.
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Ulysses demora muito mais para ler do que as horas que ele relata

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Os momentos são expandidos de tal maneira que nada que eles contenham passe despercebido ou não registrado. É como se uma super formiga, extremamente inteligente, familiarizada com a vida humana, começasse a relatar ou descrever nossas falas, ações nos seus mínimos detalhes, gestos, sorrisos e olhares. Devemos muito a Sterne na literatura moderna, foi um precursor e um mestre triunfante deste método. Algumas vezes em Tristram Shandy sentimos tudo vai parar, que o fluxo do tempo cessou, que os ponteiros do relógio estão grudados e não conseguem avançar, que o próximo minuto se transforma num obstáculo gigante.
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Soa familiar?
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Ele prossegue dizendo que muitos escritores deste século (20) fizeram uso deste recurso de câmera lenta, a narrativa que usa "fluxo de consciência" seria impossível sem isto e a fuga da duração familiar do tempo é óbvia. Nós somos magicamente transportados para outro tempo diferente, que não apenas se move lentamente, mas também move em pequena escala de num tempo privado e particular que pode ser usado para criar uma estranha beleza, como em algumas obras de Virginia Woolf, ou no memorável livro de realismo cômico (sic) Ulysses de James Joyce. Uma razão que parece representar nossa era é que é uma revolta com a tirania do tempo que passa.