A Galaxia de Gutenberg

Tablete 64

Porque sociedades não-alfabetizadas não podem “ver” filmes e fotos sem que para isto sejam devidamente treinadas

Como o objeto deste livro é elucidar os reais efeitos causados pela escrita fonética na aquisição de novos modos de percepção, vamos passar a considerar aqui a comunicação (7) que o professor John Wilson, do Instituto Africano da Universidade de Londres, fez de suas observações na África. Para os membros de sociedades alfabetizadas não é fácil compreender porque os não-alfabetizados não podem ver em três dimensões, ou em perspectiva. Supomos que esta seja a visão normal e que nenhum treinamento seja necessário para ver fotografias ou filmes. As experiências de Wilson que decorreram de tentativa de empregar filmes para ensinar os indígenas a ler, vão mostrar-nos que não é assim:

Verificamos, então, logo a seguir, algo extremamente interessante. Esse homem - o inspetor sanitário - fizera um filme cinematográfico, em movimento de câmara muito lenta, para mostrar o que se exigiria de uma família comum numa aldeia africana primitiva para se desembaraçar da água estagnada - drenar as poças, juntar todas as latas vazias e guardá-las num canto, etc. Mostramos esse filme a uma assistência e perguntamos o que tinham visto: a resposta foi a de que tinham visto uma galinha, ou alguma ave doméstica. Ora, nós ignorávamos que havia uma ave no filme! Examinamos então muito minuciosamente todos os quadros, um por um, procurando a tal ave, e, com efeito, verificamos haver, mais ou menos por um segundo, uma ave atravessando por um canto a imagem. Alguém a tinha assustado e ela fugira correndo para o lado direito, em baixo, na cena. Isso foi tudo que fora visto no filme. As outras cenas que se esperara fossem entendidas, lhes escaparam de todo. Mas apanharam algo que sàmente conseguimos ver depois que inspecionamos minuciosamente todo o filme. Por quê? Imaginamos toda sorte de explicações. Talvez fosse o rápido movimento da galinha. Tudo o mais fora feito em movimento de câmara lenta - gente andando vagarosamente e pegando as latas, fazendo demonstrações e tudo mais, e a galinha, ao que parece, fora a única cena real para eles. Também haveria a possibilidade de que a ave tivesse algum significado religioso, mas logo rejeitamos tal idéia

(7) “Film Literacy In Africa” (Alfabetizaçao pelo filme na África), Canadian Communications, vol. i n.° 4, verão de 1961, pás. 7-14.

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Pergunta: Você poderia descrever mais detalhadamente a cena do filme?

Wilson: Posso. Havia o movimento muito lento de um guarda sanitário caminhando, deparando com uma lata com água dentro, pegando então a lata e despejando a água no solo com muito cuidado, depois esfregando o solo para que os mosquitos não pudessem procriar ali e colocando a seguir cuidadosamente a lata num cesto, no lombo de um burro. Isso era para mostrar como se dispunha do lixo. Lembraria o caso dos guardas dos parques com seus bastões pontudos a recolher pedaços de papel e colocando-os no saco. Tudo isso era feito lentamente para mostrar quanto era importante recolher aquelas coisas por causa dos mosquitos que procriam em água estagnada. Depois as latas foram levadas muito cuidadosamente adiante e lançadas à terra e recobertas para que não houvesse mais água estagnada. O filme teve uns cinco minutos de duração. A galinha apareceu por um segundo nessa espécie de cenário.

Pergunta: Quer você dizer literalmente que, ao conversar com a platéia, veio a perceber que eles só tinham visto a galinha e nada mais?

Wilson: Perguntamos simplesmente a eles: Que foi que vocês viram neste filme?

Pergunta: Não o que pensaram?

Wilson: Não, o que viram.

Pergunta: Quantas pessoas havia na platéia às quais fez essa pergunta?

Wilson: Umas trinta.

Pergunta: Ninguém respondeu outra coisa além de "vimos a galinha"?

Wilson: Não, esta foi a primeira resposta imediata que deram: "Vimos uma galinha".

Pergunta: Eles viram um homem também?

Wilson: Bem, depois que continuamos a fazer-lhes perguntas, disseram que tinham visto um homem, mas o realmente interessante foi que não haviam captado qualquer sentido no filme, e, de fato, descobrimos depois, não tinham visto nenhuma cena, ou quadro, por inteiro - tinham explorado a cena à procura de detalhes. Depois soubemos pelo artista executor do filme e por um especialista de olhos que uma platéia evoluída, uma platéia acostumada a ver filmes, focaliza a vista um pouco à frente da tela de modo a poder alcançar toda a cena. Neste sentido, uma imagem, um quadro, uma pintura, um filme não é senão uma convenção. Tem-se primeiro de contemplar a cena como um todo, o que não podiam fazer aquelas pessoas por não estarem acostumadas a ver filmes. Quando lhes exibimos o filme, começaram a percorrê-lo por partes, ràpidamente, quase à maneira de um "cameraman" de televisão que estivesse atentando para os detalhes que desejasse acentuar. Ao que parece, isto é o que os olhos não acostumados a ver filmes fazem - percorrem e perscrutam a cena - e a nossa platéia não havia ainda perquirido todo um quadro e já a cena mudara, a despeito da técnica de câmara lenta empregada no filme.

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Os fatos principais estão nesse final do trecho citado. A alfabetização dá às pessoas o poder de focalizar um pouco à frente da imagem de modo a poder captá-la, por inteiro, num golpe de vista. As pessoas não-alfabetizadas, não havendo adquirido êsse hábito, não contemplam os objetos como o fazemos. Ao contrário, percorrem os objetos e imagens como costumamos fazer com uma página impressa, segmento por segmento. Não têm, portanto, um ponto de observação exterior à cena, ou ao objeto. Deixam-se absorver inteiramente por êle e o passam a viver. Os olhos não o vêem em perspectiva, porém tàctilmente, por assim dizer. Os espaços euclidianos que dependem muito de separar a vista do tacto e do som não lhes são conhecidos.
Outras dificuldades que aquêles nativos tiveram com o filme irão ajudar-nos a ver quanto as convenções da alfabetização estão inseridas até mesmo nas formas não-verbais, como o filme:

O ponto que desejo acentuar é o de que acredito devermos ser muito cautelosos com os filmes; êles podem ser interpretados à luz de nossa experiência. Daí pensarmos que — se vamos usar êsses filmes
— temos que adotar alguma espécie de treino e ensino e fazer certas pesquisas. Descobrimos também alguns fatos fascinantes nesse trabalho de pesquisas. Descobrimos que o filme, conforme é produzido no Ocidente, é uma peça de simbolismo altamente convencionalizada, ainda quando pareça muito realista. Por exemplo, descobrimos que, se estivéssemos contando uma história acêrca de dois homens a uma platéia africana e um dos homens tivesse terminado sua parte, saído de cena, desaparecendo da tela, a platéia desejaria saber o que lhe havia acontecido; não aceitaria que sua atuação estivesse terminada e que não havia mais interêsse por êle na história. Desejaria saber o que havia acontecido com aquêle sujeito e tivemos que escrever a história dessa maneira, acrescentando muita matéria que para nós não era necessária. Tivemos que segui-lo pela rua até que êle virasse naturalmente numa esquina, não poderia sair por um lado da cena, como se desaparecesse.
Era bem compreensível que êle podia desaparecer ao dobrar a esquina, mas a ação tinha que seguir assim um curso natural.
Cenas panorâmicas perturbavam muito a platéia, porque ela não sabia o que estava acontecendo. Julgavam que os objetos e detalhes na cena estavam literalmente movendo-se. Como se vê, não podiam aceitar a convenção de tal apresentação. Tampouco a idéia de uma pessoa sentada e quieta enquanto a câmara se aproximava para um “close-up”; era coisa estranha, isso de uma imagem começar a crescer até ocupar tôda a cena. Conhecemos a maneira comum de começar um filme; mostra-se a cidade, em seu todo, depois mergulha-se numa rua, chega-se depois a uma casa, leva-se afinal a câmara por dentro de uma janela, etc. Isso era interpretado literalmente como se a gente estivesse caminhando para a frente e fazendo tôdas essas. coisas até acabar sendo mtroduzida através da janela para dentro da casa.

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Resulta de tudo isto que, para empregar o filme como meio mente eficaz, tínhamos que começar por um processo de educação em certas convenções úteis e fazer filmes que ensinassem às pessoas utilizarem-se dessas convenções, habituando-as por exemplo, a ver um personagem sair para fora da cena. Tínhamos que mostrar que havia uma rua e fazer o homem seguir por ela, até voltar-se na esquina e, depois, na parte seguinte do filme, cortar a cena, imediatamente depois de sua partida.

A platéia africana não pode aceitar nosso papel passivo de consumidores na presença do filme

Um aspecto básico de qualquer platéia alfabetizada é a aceitação do papel passivo de consumidor na presença de um filme ou de um livro. Uma platéia africana, no entanto, não aprendeu a seguir em silêncio cada um para si próprio o desdobramento de uma narrativa:

Esta é uma questão importante. A platéia africana não fica sentada em silêncio, sem participar. Os presentes gostam de participar; de modo que a pessoa que exibe o filme e faz o comentário deve fazê-lo com vivacidade e ser comunicativa, estimulando e acolhendo as reações. Se há uma situação em que um personagem canta uma canção, esta canção deve ser cantada e a platéia, convidada a participar. Tal participação da platéia tem que ser levada em conta quando se faz o filme, providenciando-se oportunidades para a mesma. Em nossa experiência, os encarregados de comentar e apresentar os filmes, além de sua vivacidade, tinham que ser treinados até o mais alto grau no tocante ao significado do filme em sua interpretação para diferentes platéias. Eram africanos tirados da classe de professores e especialmente treinados para a tarefa.

Mas, mesmo quando treinado para acompanhar a ação do filme, um nativo de Gana não pode acompanhar uma película sobre os nigerianos. Não sabe generalizar sua experiência de um filme para outro, tal a profundidade de envolvimento em sua experiência pessoal. Esse envolvimento empático, natural na

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sociedade oral e no homem audiotáctil, é que se rompe e quebra com o alfabeto fonético que separa o componente visual do complexo sensorial. Isso conduz a um outro ponto das observações de Wilson. Salientou ele a importância da técnica de Chaplin na feitura de filmes para platéias de indígenas. É que, então, a história está nos gestos, e estes podem ser complicados, mas precisos. Wilson notou a incapacidade dos africanos para acompanhar narrativas complexas, mas, por outro lado, sua sutileza na dramatização:

Uma coisa que ignorávamos naquele tempo e sobre que devíamos saber muito mais, era que aquelas platéias africanas são excelentes na representação de papéis. Parte da educação da criança numa sociedade pré-alfabetizada está na representação de papéis; ela aprende a representar o papel de pessoas mais idosas em certas situações determinadas. Uma coisa que felizmente descobrimos foi que os desenhos animados tinham perfeita acolhida. Isso nos causou estranheza até que descobrimos que brincar com bonecas é passatempo muito comum.

Mas nesse particular há mais a dizer do que Wilson supõe. Tivesse ele televisão à disposição, e teria ficado surpreso ao descobrir quanto os africanos a compreenderiam mais prontamente que o filme, pois com o filme a gente é a câmara, e o homem não-alfabetizado não usa os olhos como uma câmara. Com a televisão, no entanto, a gente é a tela. E a televiso é bidimensional e escultural em seus contornos tácteis. Não é um meio para narrativa, não é tanto visual quanto audiotáctil. Essa é a razão por que é empática e por que o modo ótimo da imagem na televisão é o desenho animado. O desenho animado empolga os nativos como as nossas crianças, porque é um mundo em que o componente visual é tão pequeno, que o espectador tem tanto a fazer quanto num jogo de palavras cruzadas (8).
Mais importante ainda, o contorno muito nítido do desenho animado, do mesmo modo que o das pinturas rupestres, tendem a constituir uma zona de interação dos sentidos e, portanto, de caráter dominantemente háptico ou táctil, quer dizer, tanto a arte 'do desenhista como a do gravador ou celator, são fortemente tácteis e palpáveis. Mesmo a geometria euclidiana é, pelos padrões modernos, muito táctil.
É esta uma questão de que trata William Ivins Jr., em Art and Geometry: A Study in Space Intuitions (Arte e Geometria:um estudo em intuições espaciais).

(8) Relativamente a mais dados sôbre a nova’ orientação do espaço na contemplaçao de televisão, ver “Inside the Five Sense Sensorium”, de H. M. MCLVHAN, em Canadian Architect, junho de 1961, vol. 6, n.° 6, págs. 49-54.

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Explica ele por que os gregos nunca chegaram a dar expressão verbal a certas hipóteses ou suposições inerentes à sua consciência de espaço: "Os gregos nunca mencionaram entre os axiomas e postulados de sua geometria sua hipótese básica sobre congruência e, no entanto (...) ela figura entre os elementos mais fundamentais da geometria grega e exerce papel determinante em sua forma, sua influência e suas limitações" (pág. x). Congruência era uma dimensão visual, nova e excitante, desconhecida das culturas audiotácteis. Como diz Ivins a esse respeito: "Ao contrário dos olhos, as mãos são incapazes, sem ajuda, de descobrir se três ou mais objetos estão alinhados" (pág. 7). Esta, a razão evidente de haver Platão tanto insistido por que "ninguém destituído do conhecimento de geometria entrasse" em sua academia. Motivos semelhantes levam o músico vienense Carl Orff a recusar ensinar música, em sua escola, às crianças que já tenham aprendido a ler e escrever. Julga ele que a atitude visual formada pela leitura torna-as completamente inaptas para desenvolver suas faculdades audiotácteis na música. Ivins passa a explicar por que temos a ilusão de espaço como sendo uma espécie de continente, ou recipiente, com existência própria, quando, na realidade, o espaço é "uma qualidade ou relação das coisas, não tendo sem elas qualquer existência" (pág. 8). Todavia, em comparação com séculos posteriores, "os gregos inclinavam-se para o tacto e (...) toda vez que tinham de decidir entre um modo visual ou um modo táctil de pensar, instintivamente escolhiam o táctil". (págs. 9-10) e assim continuamos até muito tempo depois de Gutenberg, na experiência ocidental. Considerando a história da geometria grega, Ivins observa: "(...) vezes sem conta, durante um período de seis ou sete séculos, eles chegaram até a porta da geometria moderna, mas, inibidos por suas idéias tactilmusculares e métricas, nunca puderam abrir essa porta e passar para os grandes espaços abertos do pensamento moderno" (pág.58).